Um olhar do Norte
"Da mística do Benfica
Houve um tempo em que todo o País colava os ouvidos e a atenção aos aparelhos de rádio. Eram as famosas noites europeias em que o Benfica, quando jogava no Estádio da Luz, despachava o assunto nos primeiros 15 minutos do jogo. Naquelas noites todos eram benfiquistas. Sobrava ainda entusiasmo para os jogos da Selecção Nacional de hóquei em patins, para os brilharetes dos corredores de fundo do atletismo do Sporting e, mais tardiamente, para a participação do Joaquim Agostinho no Tour. O domínio do Benfica era esmagador e parecia não ter fim, até porque os benfiquistas inçavam por todo o lado, dominavam por completo os órgãos do futebol e povoavam com raríssimas excepções (que eram do Sporting) os jornais, as estações de rádio e posteriormente a televisão. Em suma, os encarnados mandavam e dispunham a seu bel-prazer. O Benfica era um clube do povo, enraizado nas suas frustrações, dores e esperanças e fazia gala em se afirmar portador de um portuguesismo sem igual. Na sua equipa brilhavam portugueses de tez escura, oriundos das ditas províncias ultramarinas. Mais ainda, nela não era admitida a entrada de qualquer jogador estrangeiro. O que se coadunava perfeitamente com a ideologia política reinante na altura e dava mesmo jeito face às moções aprovadas na ONU contra o colonialismo português. Por isso a sua pujança e apogeu não podiam deixar de ser aproveitadas pelo regime de então. E assim o Benfica, sem que a grande maioria dos seus sócios e adeptos o quisesse e percebesse, tornou-se uma bandeira, para consumo externo, do poder deposto em 25 de Abril de 1974. Claro que nesta instrumentalização não esteve só; nela enfileiraram figuras que não vem ao caso nomear. Gostem ou não os benfiquistas, o declínio do seu clube coincide com a vigência do regime democrático em Portugal. Habituado a um exercício de poder inquestionável, o Benfica não esteve à altura dos novos desafios e exigências; não conseguiu acompanhar a transição para uma progressiva democraticidade, abertura, transparência e escrutínio das instituições, para uma nova cultura de concorrência e competição assente na competência e mérito dos competidores. Continuou a agir como se as mudanças no plano político se quedassem à porta dos outros domínios da vida nacional. Animado por esta mística tem prolongado o estado de latência e dormência, como se não quisesse dar conta de que o sucesso já não vem como dantes; não está reservado de antemão, sendo preciso suar o corpinho e as estopinhas e juntar a inteligência, a vontade e a acção para lá chegar. Sim, o Benfica ainda não aprendeu a dar-se bem com a democracia, as suas regras e implicações. Os benfiquistas persistem em fazer da sua quantidade uma bitola de grandeza e superioridade como garantia e direito para tudo. Cuidam que, por serem em maior número do que os outros, o triunfo lhes deve ser servido em bandeja de prata e de mão beijada. Exigem que os governos os dispensem do cumprimento das obrigações fiscais e afins — e fazem até acordos eleitorais nesse sentido. Têm muita gente de superior e notável qualidade no vasto rol dos seus sócios, mas preferem eleger chefes com credibilidade e respeitabilidade pouco conhecidas. Esperam que os adversários entrem em campo derrotados, metam golos na própria baliza e que se arredem do seu caminho para os deixar passar. Têm gente de peso e até dar com um pau na Liga e na arbitragem, mas sentem-se ofendidos por não verem os árbitros a levá-los ao colo do primeiro ao último minuto — e, se necessário, para além disso como nos bons e velhos tempos. Têm um treinador que não cessa de exibir a sua gritante mediocridade, mas exaltam embevecidos a arrogância e bazófia espanholas e deitam fora a humildade e competência lusitanas. Não ganham nada mas andam sempre em festas e celebrações nas delegações que têm por todo o País. Os comentadores e colunistas, ao seu serviço nos media, são de uma superficialidade e banalidade ofensivas, porém os benfiquistas gostam de ser iludidos, manipulados e alienados por palavras e proclamações disparatadas e prenhes de enlevo e encanto levianos. Enfim, o Benfica deixou perverter o seu carácter popular e tornou-se uma reserva do revivalismo bacoco e insano. Nele os populistas sentem-se nas sete quintas. Quando alguém os chama à razão e lhes diz verdades como estas, há benfiquistas que reagem de uma maneira digna e exemplar, para a qual não há exaltação suficiente nem elogio que lhe faça a devida justiça. Recorrem a cartas e telefonemas anónimos com insultos de fino recorte, mostrando que a sua mística é a mesma que ultimamente tão alto tem andado a cotar o País, aquém e além-fronteiras. É fartar vilanagem! Como será belo o futuro construído com as saudades, doenças e vícios do passado!"
Sem comentários:
Enviar um comentário