quarta-feira, 11 de fevereiro de 2004

DA-SE... MST

"Factos, apenas factos

1. José Mourinho foi o bombo da festa de toda a imprensa lisboeta, sem excepções, durante a semana que passou. Até o director do «Público» achou que se justificava um editorial, atacando-o. Todos o crucificaram «pelo que disse e pelo que fez». O que disse e o que fez José Mourinho que tenhamos como seguro? Disse que se queria ir embora do futebol português, subentendendo que este não prestava devido aos jogos de bastidores. E, então, não dizem todos os articulistas da imprensa desportiva e da outra a mesma coisa, todos os dias?

2. Disse também José Mourinho que a célebre reposição da bola em jogo pelo Rui Jorge tinha sido uma jogada profundamente antidesportiva. E, então, é verdade ou não que ele não esperou que os adversários que tinham ido assistir o seu colega de equipa se recolocassem no jogo para lançar a bola e, pelo contrário, explorou essa ausência posicional para lançar a jogada que valeu o empate ao Sporting? Porque se indignaram tanto com a acusação de Mourinho e ninguém se indignou com a jogada do Rui Jorge e do árbitro? Se o F.C.Porto tem ganho o jogo com jogada semelhante (completada com um penalty de anedota) que sucederia nas bancadas de Alvalade e nos editoriais da imprensa? Dizem que Mourinho não tinha legitimidade para se indignar porque, no ano passado, durante o Lazio-Porto, ele impediu um jogador italiano de fazer um lançamento lateral. Pois impediu, mas como aqui explicou Cruz dos Santos, fê-lo deliberadamente e para impedir que a equipa italiana lançasse um ataque quando havia um defesa do Porto magoado no relvado. Em ambos os casos, o critério foi o mesmo: o jogo antidesportivo não devia valer.

3. Que mais disse ou fez José Mourinho? Segundo José Eduardo Bettencourt, terá desejado a morte em campo de Rui Jorge. Disse-o Bettencourt por ouvir dizer e acredite quem quiser. Provas não há; testemunhos, a haver, serão todos por dever de ofício e fidelidade à entidade patronal. O mesmo em relação ao tão falado episódio da camisola rasgada, que Mourinho igualmente desmente como «absurdo».O único testemunho que temos é o de Bettencourt e, por ouvir dizer, até agora, não apareceu ninguém a dizer que tinha assistido ao acto. Os dois delegados ao jogo presentes começaram por nada ver e nada relatar. Depois houve um que acrescentou uma adenda a subentender que tinha visto, mas, logo no dia seguinte e antes ainda de Mourinho lhe ter chamado mentiroso, veio dizer que afinal não tinha visto, tinha apenas tomado conhecimento da ocorrência via José Eduardo Bettencourt.

4. O Sporting diz que tem um vídeo mas, estranhamente, não o mostra. Temos assim apenas um testemunho indirecto e outro, directo, que o contradiz. E nenhum testemunho independente ou qualquer outra prova. O que poderia fazer, se entendesse fazer alguma coisa, um órgão de disciplina que, ao contrário do CD da Liga, fosse um órgão isento e com pudor? Abrir um processo de averiguações para tentar saber se Mourinho tinha de facto rasgado a camisola e desejado a morte de Rui Jorge publicamente, ou se se tratava apenas de uma grave difamação de um alto responsável do Sporting, para mais susceptível de desencadear a ira dos adeptos sportinguistas sobre os 1200 portistas que ainda se mantinham dentro do estádio. O que fez o CD da Liga? Partiu do princípio de que Bettencourt dizia a verdade e Mourinho mentia e abriu um inquérito apenas contra este. Revelador.

5. A propósito, desafio os leitores a fazerem o mesmo exercício que eu tentei em vão: vejam se conseguem rasgar com as mãos uma camisola daquelas. E vejam ainda se conseguem que ela fique, não rasgada de lado ou pela gola, mas com um rasgão a meio, como se tivesse sido esfaqueada. Terá Mourinho sacado de uma faca? Sabem como é que se consegue rasgar uma camisola daquelas? Com um a puxar para um lado e outro a puxar ao contrário. Nesse caso, Mourinho terá puxado de um lado, e quem terá puxado do outro? E qual deles a rasgou? Estou ansioso por ver o vídeo do Sporting...

6. Que eu saiba, no mundo inteiro, os jogadores trocam de camisola dentro do campo, ou, pelo menos, antes de irem para os respectivos balneários. No Sporting parece que não: manda-se o roupeiro levar a camisola ao balneário do adversário. Curioso.

7. No Mundo inteiro, também, a camisola que se troca é aquela com que se jogou. Mas Rui Jorge jogou com uma de mangas compridas e a que apareceu rasgada tinha as mangas curtas. Explicação: no Sporting, os jogadores guardam uma camisola extra dentro dos cacifos exclusivamente para as trocarem depois dos jogos e via roupeiro. Adensam-se os indícios contra José Mourinho.

8. Se Mourinho não escapou à sanha justiçeira do CD da Liga, outros, para além de Bettencourt, escaparam. Liedson, por exemplo, que passou o jogo a fazer teatro, com uma encenação que passou despercebida a Lucílio Baptista, mas que num jogo internacional não lhe passaria, sob pena de não voltar a arbitrar sob a égide da UEFA. A Direcção do Sporting, que deliberada e abertamente violou a lei na repartição dos bilhetes para o público. O presidente da SAD do Sporting, acirrando convenientemente os ânimos, quatro dias antes do jogo, falando dos chaimites para receber «os novos vândalos», da instigação ao crime e outras atoardas que tais. Um gentleman.

9. O gentleman continuou a espalhar a sua visão moralista do futebol, mal desembarcou de uma semana ausente. Anote-se: os outros é que «perderam a cabeça, deram um festival de loucura». Provas? As provas «foram dadas publicamente» (seria a camisola exibida por Bettencourt?). E o videozinho, pergunta-se. «Não perguntem se temos provas. Temos as nossas provas mas vamos guardá-las» (para o museu, para recordação?) Mas o senhor continua muito zangado — agora contra a comunicação social. E porquê? Porque, apesar de ter estado ausente, ele acha, vejam lá, que a comunicação social «deu o mesmo tratamento ao Sporting que deu à posição do FC Porto, prestando um péssimo serviço ao País.» Se ele mandasse, está bom de se ver, no mínimo, o FC Porto, ou até a própria cidade, desapareciam do mapa, quanto mais das notícias.Saudades do antigamente, desse país do antigamente, em que um gentleman como ele não podia ter a mesma cobertura mediática que um vândalo como Pinto da Costa.

10. E Pinto da Costa? Em vão os jornalistas passaram uma semana inteira, antes e depois do jogo, a estender-lhe o microfone para ver se o incitavam a alguma declaração bombástica que depois pudesse ser pretexto para piedosos editoriais sobre o destempero verbal dos dirigentes. Mas o homem só abriu a boca para anunciar que o seu clube deixava de ter relações com os cavalheiros do Sporting. Li algures o texto de um indignado editorialista que perguntava como é que Pinto da Costa podia «continuar calado face a tais acontecimentos?» Fartei-me de rir.

11. Faço, de boa-fé e boa vontade, uma correcção de pormenor ao que aqui escrevi na semana passada. Eu escrevi que, quando o Rui Jorge relança a bola em jogo, na jogada crucial do encontro, o Jorge Costa ainda está fora de campo, a pedir ao árbitro autorização para entrar, e é exactamente pelo buraco que ele deixou desocupado que o Liedson se infiltra na área do Porto, para depois sacar o penalty que evitou que o Sporting esteja hoje a dez pontos do FC Porto e o campeonato talvez decidido (há que contar agora com o novo factor extra de dificuldade para os portistas que resultado estado inqualificável da relva do Dragão). Ora, quando escrevi, segunda-feira de manhã, eu tinha visto apenas duas repetições da jogada e só uma em câmara lenta. Depois, tive ocasião de ver várias outras e constatei que, de facto, o Jorge Costa já está para cá da lateral quando o Rui Jorge lança a bola, e que talvez o gesto dele não seja a pedir ao árbitro autorização para entrar, mas sim que retarde o lançamento até ele e Maniche se recolocarem em jogo. Isso, porém, só reforça o que eu escrevi: que o Jorge Costa teve consciência de que relançar o jogo assim era tirar partido da sua ausência. Enganei-me, pois, numa leitura visual que implicou, talvez, um segundo de diferença. Mas também me enganei noutra conclusão que tinha tirado e que as repetições depois vistas me levaram a alterar. Eu escrevi que a responsabilidade tinha sido do árbitro, que tinha mandado o Rui Jorge lançar a bola, e não deste, como acusou Mourinho. Ora, de facto, talvez (não se vê) o árbitro tenha dado a ordem. Mas o Rui Jorge foi lesto a cumpri-la e fê-lo exactamente para o local onde sabia que faltava o Jorge Costa e deliberadamente para tentar, como conseguiu, tirar vantagem desse facto. Foi um gesto de profundo antidesportivismo que só o calor do jogo pode justificar.

12. O sr. Daniel Reis, que aqui escreve como sportinguista, aproveitou o meu engano para me chamar mentiroso, aldrabão e manipulador e, para ensaiar, dar-me lições de ética jornalística. Obviamente, não ofende quem quer, mas quem pode, e o sr. Daniel Reis não é ninguém no jornalismo português para me conseguir ofender. Quanto à deontologia, o problema dele comigo foi eu aqui ter escrito que não entendia como é que alguém pode ser num jornal cronista com cor clubista assumida e noutro fingir-se de jornalista isento, assinando textos pseudofactuais onde repete a propaganda das razões do seu clube, induzindo os leitores em erro, ao confundir opinião com notícia. Por isso é que ele se mostra tão indignado por eu habitar também as páginas de A BOLA — onde sempre estive com expressa declaração de princípios de que aqui não faço jornalismo mas apenas opinião. É outro com saudades do antigamente. Saudades do tempo em que eles viviam a dois, no paraíso reservado da Segunda Circular, e todas as vozes incómodas estavam silenciadas.
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