Dezassete meses e cinco dias
Dezassete meses andou Luiz Felipe Scolari a preparar uma equipa errada que, teste após teste, demonstrou, mesmo até ao fim—até aos últimos jogos de preparação contra as incipientes selecções da Lituânia e do Luxemburgo— não ter qualquer hipótese de fazer um bom Europeu. Porque já não havia tempo para ensaiar outra equipa, porque quase toda a gente calou as suas críticas por «dever patriótico», porque havia o precedente do Brasil no Mundial da Coreia-Japão, porque a teimosia do seleccionador foi levada à conta de tique de génio e porque o seu extraordinário talento para relações públicas meteu ao bolso jornalistas e opinião pública, por tudo isso, Portugal avançou para o Europeu com a mesmíssima equipa que durante ano e meio só trouxera desilusões e descrença.Eficámos todos à espera do milagre... para vermos provado que os milagres não acontecem a quem os não merece.
Há quem pense, todavia, que não: que foi a chegada da imagem de Nossa Senhora de Caravaggio, que Scolari mandou vir da sua terra gaúcha, que motivou a radical transformação da Selecção, da equipa lastimável que se exibiu contra a Grécia na equipa nova que emergiu contra a Rússia e brilhou contra a Espanha.
Mas a verdade foi outra e bem mais simples: à vista, não apenas do resultado, mas também da misérrima exibição contra os gregos, na iminência denemaos quartos-de-final conseguir chegar e com os personagens já a agarrarem- se a inacreditáveis desculpas, tais como a da inibição causada pelo apoio do público (!), Scolari teve de deixar-se de uma teimosia suicidária e irresponsável e lançar mão da única hipótese de redenção que tinha.
Quando na noite da passada terça-feira, Luiz Felipe Scolari pôde ficar finalmente a sós com a Senhora de Caravaggio e lhe pediu o favor de um milagre, a Senhora respondeu- lhe: «Não me peças milagres, porque eles só acontecem a quem os merece. Deixa-te antes da tua soberba e teimosia e reconhece o valor de quem o tem: pega nos jogadores que oMourinho fez campeões europeus e põe-os a jogar. É a tua única hipótese de salvação.»
Na verdade, Scolari já havia feito uma única concessão à razão, uma concessão de última hora, que foi pôr o Maniche em lugar do Petit contra a Grécia — e o Maniche tem sido provavelmente o melhor jogador da Selecção ao longo dos três jogos. Depois da Grécia, a revolução veio, quase total: o melhor central do Mundo em 2004 tomou obviamente o lugar do Fernando Couto; o Nuno Valente apeou o Rui Jorge; o Deco substituiu o Rui Costa, com a utilidade esperada; o Cristiano Ronaldo tomou o lugar cativo do Simão e até o Nuno Gomes acabou a substituir na hora exacta um irreconhecível Pauleta, que ao longo de 270 minutos de jogo não conseguiu fazer um único remate às balizas adversárias.
De todos os inamovíveis durante mais de ano e meio, apenas não saíram o Figo e o Ricardo. O Figo porque continua imprescindível, sobretudo se remetido à sua função natural de extremo, e o Ricardo, que talvez acabe ainda substituído pelo Moreira se a sorte deixar de proteger a sua incapacidade no jogo aéreo, como sucedeu contra a Espanha.
Como ontem escrevia José Mourinho em O jogo, «Em boa hora os gregos nos ganharam,em boa hora originaram reflexões que determinaram modificações radicais na nossa Selecção. Esta Selecção não é aquela que jogou mal meses e meses e que nos tornou num país descrente com a nossa equipa. E imaginem se esta equipa tivesse sido trabalhada nos últimos dois anos!»
Pois é, agora os mesmos que antes não se cansavam de elogiar a teimosia, a «coerência» de Scolari, a sua «fé» numa equipa menos que banal,sem qualquer fio de jogo nem atitude competitiva, agora são capazes de se render à sua capacidade de transformação, à sua genial leitura das alterações necessárias.
Mas a pergunta mantém-se: porque esperou ele dezassete meses para ver o que todos já tinham visto? Que outro treinador competente desprezaria os jogadores que durante dois anos a fio venceram o que havia para vencer na Europa de clubes, ao ponto de nunca se ter dignado assistir a um jogo do FC Porto? Quem, senão Scolari, ignorou até ao fim que tinha uma defesa e um meio-campo formados, treinados e prontos a ser usados, sem necessidade de inventar mais nada? E se o fez, como eu julgo, por pura vaidade, então o destino trocou- lhe as voltas: ao ver a Selecção de Scolari finalmente a jogar futebol, finalmente crente na vitória e com espírito de conquista, e ao escutar simultaneamente os comentários televisivos de José Mourinho, eu - e milhões de portugueses certamente — percebemos com uma nitidez impúdica que o treinador campeão do Mundo de Selecções,na hora do aperto, se tinha limitado a lançar mão da herança e do trabalho deixados pelo treinador campeão da Europa de clubes.
E o que ele não queria que se visse tornou- se gritantemente evidente: que é muitíssimo mais fácil ser campeão do Mundo com qualquer selecção do Brasil do que ser campeão da Europa com qualquer equipa portuguesa. O futebol, ao contrário do que algumas vedetas imaginam, não é assim tão complicado como isso.
O mais importante, o mais claro e o mais sério do futebol, passa-se à vista de todos, durante os jogos e nos estádios. Não se passa nos míticos balneários, nem nos treinos à porta fechada, nem nos jogos de bastidores e de influências entre jogadores, clubes, treinadores e empresários. A hora da verdade, o momento em que se desfazem mitos e se faz justiça é durante os jogos. E é porque não é assim tão complicado perceber o que se passanum jogo, quem joga bem e quem joga mal, que o futebol é um desporto que arrasta multidões de adeptos e não é uma ciência oculta, apenas acessível a uns quantos iluminados. Tem segredos e tem ciência própria, claro. Mas tem, sobretudo,uma leitura que se baseia na observação e no bom senso. Não é preciso ser diplomado em cursos de Verão de treinador para perceber que, neste momento e atendendo à forma de cada um, o Vítor Baía deveria estar no lugar do Ricardo, o Ricardo Carvalho no lugar do Fernando Couto, o Nuno Valente no lugar do Rui Jorge, o Maniche no lugar do Petit, o Deco no lugar do Rui Costa, o Cristiano no lugar do Simão e o Nuno Gomes pronto a substituir o Pauleta.
Não era preciso, aliás, ter esperado dezassete meses e ter sofrido a humilhação às mãos deuma selecçãomenor, como a grega, para o entender . Pergunte-se a Portugal inteiro, e apesar das disfunções clubistas de cada um, estou certo de que o consenso aqui é praticamente unânime. Só mesmo o seleccionador é que foi o último a percebê-lo.
E agora, ainda iremos a tempo? O trabalho de sincronização da «equipa de emergência» está a ser feito durante os próprios jogos, não o tendo sido feito antes. Muitos destes jogadores estão em clara sobrecarga de esforço, como é o caso de Figo, de Pauleta e dos jogadores do FC Porto, esgotados por uma época tremenda. E os que no decorrer dos jogos os poderão substituir, embora mantenham a motivação, estarão psicologicamente afectados pelas circunstâncias em que perderam a titularidade com que sempre contaram.
E Scolari, esse, navega à vista: está dependente do momento de inspiração de Nuno Gomes ou da bola que bate no poste de Ricardo. Daqui para a frente, tudo é uma incógnita...
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