"Saída pela porta grande... dos fundos
HÁ uma imagem que me ficou marcada, no rescaldo de Gelsenkirchen: o avião que trazia a equipa do FC Porto, e com ela a taça acabada de conquistar e que a Europa inteira cobiça, tinha aterrado havia pouco em Pedras Rubras, eram umas seis da manhã. Depois de na própria pista terem recebido a homenagem dos funcionários do aeroporto, os jogadores esperavam no átrio, no meio da restante comitiva, o momento de saírem lá para fora e tomarem lugar no autocarro que iria demorar ainda uma duas horas a chegar ao Estádio do Dragão, onde uma multidão os esperava desde as 10 da noite. Foi então que apareceu José Mourinho, acompanhado pela mulher e pelas filhas, com quem tinha viajado na fila da frente do avião, alheio a tudo o que se passava atrás de si. Dirigiu-se a uns funcionários do aeroporto com quem falou durante breves instantes e rapidamente desapareceu para nunca mais ser visto no Porto: no rádio do carro que me conduziu de volta a casa ouvi que teria partido directamente para Setúbal ou para Lisboa—até hoje ainda não sei. E dei comigo a pensar que, afinal, Mourinho não tinha saído nem pela porta grande—que merecia—nem pela porta pequena, que seria impensável. Saiu, sim, pela porta dos fundos: a grande, sem dúvida, mas não a da frente.
No Record dessa mesma manhã seguinte à noite de glória, ainda o povo estava na rua a festejar e já o editorialista Bernardo Ribeiro concluía: «... este treinador afrontou o sistema e tudo vai fazer para denegrir a sua passagem pelas Antas. Será sistematicamente esquecido e maltratado. A culpa será... do PC (Pinto da Costa)?» Confesso que nunca tinha lido nenhum texto deste Bernardo Ribeiromas seria quase capaz de apostar que no passado, quando Mourinho e Pinto da Costa eram a imagem inabalável do FC Porto intratável a nível doméstico, ele não fazia distinção e seguramente não era tão elogioso para com Mourinho. Pois é, onde estão agora os que ainda há pouco tanto o criticavam, lhe chamavam arrogante e insuportável, os que comeram sem pestanejar o barrete da camisola do Rui Jorge, pretensamente rasgada por Mourinho —conforme demonstravam as provas que o Sporting tinha em seu poder e que jamais vimos nem veremos? Agora, que José Mourinho já não é treinador do FC Porto, é só elogios e até a sua imediata transformação em vítima do sistema e de PC...
Mas está enganado o homem do Record: os portistas não esquecem nem se preparam para maltratar Mourinho. Apenas não estão dispostos a alienar a sua dignidade, mesmo perante aqueles a quem mais devem e mais gratos estão. Afinal, o mesmo fez o Benfica com o mesmo José Mourinho, quatro anos atrás...E eu, que então aqui elogiei a atitude da direcção do Benfica, escrevendo, todavia, que Mourinho era o mais promissor treinador do futebol português, hoje escrevo exactamente o mesmo.
José Mourinho foi o melhor treinador que alguma vez passou pelo FC Porto, desde que me lembro. O melhor na preparação táctica dos jogos— onde o seu trabalho chega a ser obcecante —, o melhor na leitura estratégica do jogo, o melhor na liderança dos jogadores, o mais inteligente, o mais culto, o mais profissional, o que melhor tira partido da imprensa e das intervenções públicas. Os seus segredos guardou-os sempre em treinos à porta fechada e em relatórios sobre os adversários e entregues aos jogadores — um dos quais, exactamente o relativo ao Mónaco, tive a honra de receber como oferta sua, antes do grande jogo da final. Mas quem quer que tenha entrevisto um desses treinos, lido um desses relatórios ou o tenha ouvido dissertar para auditórios restritos sobre a forma de liderar uma equipa não pôde senão constatar como o seu trabalho está a anos-luz de qualquer outro treinador português, incluindo tantos que se tomam por estrelas ascendentes e se põem em bicos de pés a dizer que «já merecia um grande!».
José Mourinho vai marcar para sempre uma época, não apenas no FC Porto mas no futebol português. Nadamais será como dantes depois dele: muitos tentarão imitá-lo, muitos tentarão humildemente aprender a sua lição, mas nenhum ja mais o igualará. É um dos raros caso sem que a ambição caminha a par com o talento e em que o talento caminha a par com a capacidade de trabalho e de entrega. Dizer que os portistas iriam agora dedicar-se a esquecer Mourinho é de uma estupidez sem limites. Se alguma coisa este clube tem é memória.
E tem também gratidão: ninguém, entre toda a nação azul e branca, iria ou irá jamais «maltratar » José Mourinho. Daqui a 20 anos ainda falaremos dele com saudade e com uma infinita gratidão. Era isso e apenas isso que queríamos ter mostrado a José Mourinho depois do apito final de Kim Nielsen em Gelsenkirchen: a nossa gratidão. Já sabíamos que ele se ia embora e, embora tristes, todos o aceitávamos como facto inevitável—não apenas pelo lado financeiro, o que seria pouco para alguém como ele, mas também pelos novos desafios desportivos que constituem a adrenalina que o faz ser o vencedor que é. Já sabíamos isso e estávamos conformados. Mas queríamos mostrar-lhe que lhe estávamos gratos e queríamos também — e parece-me que não era demais—que tivesse ido ali, junto dos milhares de emigrantes vindos de todo o centro da Europa e dos milhares de adeptos vindos de Portugal e que tinham passado dois anos a seguir por todo o lado o FC Porto de Mourinho, de Sevilha a Gelsenkirchen, agradecer-nos igualmente a parte que nos cabia, aos adeptos e ao clube, nos seus e nossos êxitos. Era só isso: que tivesse ido ali, junto à bancada sul, fazer-nos um gesto de agradecimento, de alegria, de saudação, de adeus, que fosse. Já sei que encontrou a família de repente e decidiu-se por ficar junto a ela. Mas a família iria tê-la logo a seguir, junto à cabina, no avião, em casa. A família portista, essa, era a última oportunidade para a ver e para se despedir. José Mourinho optou por não o fazer e, assim fazendo, optou por sair de cena pela porta dos fundos.
Lamento infinitamente escrever isto mas ficaria de mal com a minha consciência se o não fizesse. Tenho profunda admiração por José Mourinho, não principalmente por ele ter triunfado mas por ter ousado enfrentar o verdadeiro sistema português, que é o da inveja dos medíocres. Não esqueço nem nunca serei ingrato. Devo-lhe algumas das maiores alegrias que o futebol jamais me deu. Mas, apesar de tudo e ao contrário do que ele talvez imagine, sei e tenho plena consciência de que o que conseguiu não o conseguiu sozinho e não o conseguiria em nenhu moutro clube português. O FC Porto já era um grande clube do mundo antes de Mourinho e vai continuar a sê-lo depois dele. Ao contrário do que disse Luís Duque, o Sporting não poderia estar agora no lugar do FC Porto se tem contratado José Mourinho, depois de ele sair do Benfica. Porque não há comparação alguma entre a competência de Pinto da Costa e o snobismo serôdio de Dias da Cunha. Porque não há comparação alguma entre o profissionalismo da organização do FC Porto e o voluntarismo da organização sportinguista. Porque não há comparação alguma entre o espírito de conquista de toda a nação azul e branca, e que na equipa se transmite de geração em geração, venha quem vier, e a atitude de eterna lamechice e desculpas esfarrapadas para os fracassos, do Sporting. Há anos que o escrevo mas—felizmente!—em vão: os adversários internos do FC Porto deveriam estudar e tentar compreender as razões para os seus êxitos, em vez de se ficarem pela atitude de maus perdedores e de tentarem sempre justificá-los com razões obscuras. Quando acordarem o FC Porto será não apenas o maior clube português em termos de títulos internacionais, que já o é, mas também em termos de adeptos espalhados por esse mundo fora. Que nunca acordem! (a negrito, por minha iniciativa e por corresponder inteiramente ao que sinto)
Ora, ninguém percebeu isso melhor que o próprio José Mourinho. Ninguém como ele percebeu melhor a célebre verdade que todos os treinadores que passaram pelos outros e depois pelo FC Porto unanimemente referiram: que um título ganho no Porto custa e vale infinitamente mais que um título conquistado em Lisboa. Aos que agora o elogiam e dantes o execravam e agora já o vêem como vítima, esquecida e maltratada pelo sistema PC, convém recordar que a primeira vez que José Mourinho disse publicamente que queria ir para fora e libertar-se do sistema do futebol português foi na célebre noite após o jogo de Alvalade deste ano...
E é só por isto que tínhamos direito a esperar que Mourinho tivesse festejado connosco, que tivesse feito parte da alegria que era de todos. Porque os treinadores e os jogadores vão e vêm e nós, adeptos, ficamos sempre. E, por mais insubstituíveis que eles nos pareçam, a verdade é que continuamos sempre. No limite, basta que haja onze adeptos e podemos fundar um clube, constituir uma equipa sem treinador e jogar. Mas um treinador não sobrevive sem um clube e não há clubes sem adeptos. Por mais brilhantes que sejam os jogadores e o treinador, somos nós, os adeptos, o sal do futebol."
Agora permitam-me que transcreva, mais uma vez, o pensamento do Jorge Olimpo Bento e que já o pus num post anterior:
"... .Mourinho vai continuar a ter sucesso. Mas não voltará a conhecer os dias e noites dos triunfos inebriantes que teve no Porto. Não voltará a encontrar adeptos à sua espera e a cantar como pássaros azuis no alto das madrugadas. Encontrará os bolsos cada vez mais quentes de dinheiro, mas o seu interior frio e vazio das emoções e excessos que dão cor e sentido à existência. Porque não há no Mundo outro clube como este que acenda no estádio o fogo que incendeia a alma do desporto e alumia os nossos passos. Porque nele está sempre em brasa o ideário que irmana o desporto e a vida: Citius, Altius, Fortius! Bendito sejas, Futebol Clube do Porto, porque anulas a lógica das probabilidades e dás a um pequeno país a glória de Gelsenkirchen e de tantas jornadas que já vivemos e havemos de viver! Porque és um poema que nos tira o pó da boca e o luto da nossa vida. Pões brilho nos nossos olhos e música no coração. És hoje o nome celebrado e colorido de Portugal no Mundo."
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