" Anderson Luís de Sousa, vulgo Deco, é um daqueles raros jogadores de futebol pelos quais vale a pena pagar bilhete para ir ver o jogo. Jogue ele pelo Benfica, pelo F. C. Porto, pela Selecção Nacional ou pelo Barcelona, Deco será sempre um jogador de excepção, que alia a uma fome quase voraz de jogar futebol, um talento para o improviso, o imprevisto, o golpe de génio, aquilo distingue os poucos jogadores de futebol que passam à história e são lembrados, muitos anos depois de terem arrumado as botas e permanecerem apenas na memória daqueles que os viram jogar. Mas Deco será também — na definição do relator da sentença do Conselho de Disciplina que o condenou a três jogos de suspensão por ele, num gesto de revolta e de despedida do jogo, ter lançado a bota em direcção ao árbitro que injustamente o despediu do Boavista-Porto — um «indivíduo » do pior: «iníquo, indigno, intimidatório e consabidamente descabelado», o qual «continua a não interiorizar o desígnio de pautar a sua intervenção no jogo de modo a não merecer nova censura». Por isso, e porque os sub-21 destruíram a cabina do estádio de Clermont- Férrand em sinal de alegria pela vitória sobre a França, o relator do processo de Deco resolveu aplicar-lhe de castigo, não um, nem dois mas sim três jogos de suspensão. Para que sirva de exemplo e para que aprenda a corrigir-se e a não ser indigno, iníquo e consabidamente descabelado. Do ponto de vista do sr. relator (cujo nome, felizmente, ignoro), a sentença é, de facto, exemplar. É sabido que a CD — um órgão montado e dominado pela «entente cordiale » entre o Benfica e o Boavista — existe basicamente para extravasar o ódio ao F. C. Porto, sem qualquer pudor de ver as suas «descabeladas » sentenças contra jogadores do Porto serem depois, uma por uma, corrigidas superiormente pelo Conselho de Justiça, embora sempre a destempo de reparar os danos causados pela sanha disciplinar contra o azul e branco: a seu crédito, nos últimos três anos, o F. C. Porto já deve ter uma dúzia de jogos de castigo que os seus jogadores cumpriram por determinação da CD e que, a destempo, o CJ julgou injustificáveis. Isso pouco importa ou envergonha os pseudo-juízes da CD: nem a caricata sentença do McCarthy lhes serviu de reflexão. Eles estão lá, basicamente, para, no que puderem, castigar os jogadores do F. C. Porto como não castigam nenhuns outros e mesmo, se necessário ou irresistível, não se limitarem a castigá-los mas também a ofendê-los. Está fácil de ver que, se dependesse deste senhor, nunca mais o Deco pisaria relvados portugueses com a camisola do F. C. Porto. A arte e o talento que exibe, a par dos danos que causa a terceiros, tornam-no íniquo, indigno e descabelado para a práctica do futebol. Seria motivo de relexão para gente séria o facto de o Deco — um jogador criativo, que vive com o ataque e o golo como objectivos e que é um dos mais castigados com faltas em todo o campeonato — ser simultaneamente um dos mais castigados com carões dos árbitros e castigos da CD. Como muito bem sabemos, uma coisa não joga com a outra: um jogador criativo joga com paixão, não faz antijogo. Um Deco não é um Fernando Aguiar. Mas, como ele próprio diz e com razão, muitos árbitros acham que manifestam autoridade, revelam personalidade e sem dúvida devem impor-se aos olhos de quem os nomeia e classifica, quando lhe mostram o amarelo por uma falta por ele cometida no calor da luta ou por um protesto mais do que humano, ao mesmo tempo que ignoram um rol de faltas de jogadores banais ou medíocres que o massacram para ver se conseguem secar o seu talento a golpes de c a - nela. O Deco leva uma, leva duas, leva três, leva quatro: e os árbitros sempre impávidos, até ao momento em que ele responde também ou explode em protesto e aí avançam com a cartolina em riste e ar de grandes justiçeiros. Como escreveu há dias José Manuel Freitas, o problema do Deco é jogar no Porto. Se jogasse no Benfica ou no Sporting, já haveria uma campanha pública de «deixem jogar o Deco!». Mas o F. C. Porto e o Deco não têm culpa de que o Benfica e Luís Filipe Vieira o tenham deixado sair para o Porto, via Salgueiros, e ninguém tem culpa de que ele, manifestamente, se entregue ao jogo com uma paixão e uma febre de futebol construtivo que já não é muito comum neste tempo de mercenários e burocratas do futebol. Mas, mesmo assim... Mesmo assim, não é admissível nem tolerável que um obscuro conselheiro de uma nebulosa Comissão Disciplinar, chamado a julgar um jogador, não se limite a punir a sua actuação como atleta mas ainda se permita atacar e ofender pessoalmente o jogador. Quem é este senhor para julgar que o Deco é um «indivíduo indigno »? Que poderes ou qualificações de mérito lhe assistem, que lhe deve o futebol em particular, que formação é a sua, que percebe ele de futebol ou de disciplina ou de justiça para se atrever a qualificar um jogador como íniquo, indigno e descabelado? Que paródia de disciplina é esta, que descabelada, indigna e iníqua justiça vem a ser esta? Por muito que custe ao senhor, ele ficará apenas na pequena e triste história dos odiozinhos do nosso futebol. Mas o Deco, pelo muito que já deu ao futebol português, pelo muito que já fez vibrar todos aqueles que, independentemente da paixão clubista, gostam deste jogo, ficará para a história onde o senhor relator da CD vale zero. E, por muito que lhe custe, com ou sem Deco, com ou sem os castigos e os insultos contra o Deco, ele e o F. C. Porto hão-de voltar a ser campeões este ano. Porque às vezes, às vezes ainda, o mérito e o talento triunfam sobre a inveja e a mediocridade."
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