quarta-feira, 31 de dezembro de 2003

ESTA TINHA DE TRANSCREVER INTEGRALMENTE... MST AO SEU MELHOR NÍVEL

Esta é a crónica no jornal o avante lampião do Miguel Sousa Tavares. Pela sua qualidade, terei que a transcrever toda.
"O MELHOR DO ANO
Pinto da Costa teve razão, quando disse que nenhum outro ponta-de-lança do mundo se lesionaria com gravidade estando na posição de defesa-direito, em auxílio à defesa, como sucedeu com Derlei. E, acrescento eu, talvez nenhum outro presidente de clube no mundo prorrogasse o contrato com um ponta-de-lança de 27 anos, nas condições por este pretendidas e no dia seguinte a ele ter contraído uma lesão tão grave quanto a de Derlei. São estes pormenores — a atitude de Derlei, sacrificando-se pela equipa no campo todo e mesmo num jogo sem grande grau de dificuldade, e a atitude de Pinto da Costa, retribuindo, sem hesitar e na hora mais necessária, a generosidade que Derlei tem posto em campo ao serviço do clube — que explicam, desde há largos anos para cá, as razões pelas quais o FC Porto é a equipa dominante no futebol português. Os despeitados, os invejosos, os de mau perder podem continuar a insistir até à náusea que as razões são outras e obscuras: os árbitros, o famoso «sistema» (que, por acaso é dominado, de há una anos para cá, pela coligação Boavista/Benfica) ou outras que tal. Pois que continuem na sua, com o proveito que se conhece. O facto é que quando, por exemplo, Pinto da Costa resolveu que o clube continuaria a pagar até final do contrato, por mais dois anos, o salário de um jogador tragicamente morto, como aconteceu com a família do Rui Filipe, depois aparecem jogadores como o Derlei, que insistem em jogar a final da Taça, acabados de sair de uma intervenção cirúrgica. É o que sucede quando os jogadores sentem que, ao serviço do FC Porto, são mais do que simples artistas contratados, são parte de um clube e de uma família de valores, cuja força e mística é ser grande na hora das vitórias e continuar a ser grande na hora do sofrimento. Derlei não nasceu para o futebol no FC Porto. Mas, sem dúvida, cresceu futebolisticamente no FC Porto e, sobretudo, assumiu essa tal mística, a que dantes se chamava amor à camisola, e que, por exemplo, o Benfica tinha há 20 anos atrás e hoje desesperadamente procura reconquistar. Só que há coisas que não acontecem por simples vontade e esse tal amor à camisola, coisa tão em desuso nos dias de hoje, não se adquire apenas com um bom treinador ou até com uma boa equipa. É coisa que nasce de cima para baixo e que implica um esforço de continuidade e de coerência ao longo dos anos. Foi isso, quer queiram quer não, o que Pinto da Costa fez no FC Porto. É isso que Benfica e Sporting não têm sido capazes de fazer, por uma simples razão, que muita gente não gosta de ouvir, mas que é a minha explicação: por falta de dirigentes à altura. É preciso mais trabalho e talento do que se julga para transformar um clube grande em Portugal num clube que, segundo o ranking da FIFA, é regularmente classificado entre os 10 ou 20 melhores do mundo. Não basta viver a mandar umas bocas para o ar, queixar-se invariavelmente das arbitragens e continuar a tentar convencer os sócios de que os insucessos são sempre fruto das malfeitorias alheias. Veja-se o caso recente do João Pereira, no Benfica. É apenas um miúdo de 18 anos, lançado esta época e que teve a sorte de lhe correr bem a estreia, se não talvez não tivesse voltado a ter novas oportunidades tão cedo. O facto é que as teve e que indiscutivelmente revelou qualidades e um futuro, para ser trabalhado, pela frente. E como, além disso, era—coisa rara —produto das escolas do clube, foi quanto bastou para que se visse nele um símbolo da «alma benfiquista » recuperada e se tornasse urgente garantir a sua continuidade no futuro para o clube. Manifestamente, ele, ou alguém por ele, deu-se então conta da importância que, de repente, tinha assumido e as negociações para a renovação tornaram-se inesperadamente difíceis. Provavelmente, o João Pereira, como tantos na sua idade hoje em dia, já se imaginava, ao fim de quatro ou cinco jogos, com um pé em Itália, Espanha ou Inglaterra. Finalmente, acabou por renovar e então, e só então, proclamou-se mais um «benfiquista desde pequenino ». Qualquer semelhança entre isto e a tal mística de um clube é pura confusão. Mas falemos, então, do Derlei, objecto principal desde texto, no dia em que ele recupera da delicada operação a uma rotura de ligamento do joelho. Independentemente de todos os elogios que, nesta hora, tenho lido dirigidos ao jogador e que não duvido que sejam sinceros, também não tenho dúvida alguma de que o grosso do povo benfiquista e sportinguista está aliviado, se não feliz, com a gravíssima lesão do Derlei. Porque as coisas são como são e—esse é, aliás, o melhor elogio que se pode fazer ao Derlei—o povo sabe que, sem ele, o FC Porto fica dramaticamente enfraquecido. Venha Maciel, venha Adriano, venha Carlos Alberto, sem pôr em causa o valor deles, ninguém poderá substituir a importância de Derlei no FC Porto. Para mim, Derlei foi o melhor jogador do ano, o melhor da época de 2002/03 e estava a ser o melhor da época corrente — onde era o líder dos marcadores do Campeonato e do prémio de regularidade de A BOLA. A ele deve o FC Porto em grande parte a época dificilmente repetível que terminou em Junho passado coma conquista da Taça, a juntar às do Campeonato, Taça UEFA e Supertaça nacional. O Derlei ficará para a história do FC Porto, no que respeita a Sevilha e à Taça UEFA, no mesmo patamar mitológico que ficou o Madjer em Viena, na conquista da Taça dos Campeões. Em Sevilha, eu estava sentado exactamente no enfiamento do ataque do FC Porto, durante a dramática segunda parte do prolongamento. Eu sabia que, para ganhar o jogo, dependeríamos quase necessariamente das forças e do talento do Derlei. E via-o, quase desfalecido, arrasado pelo esforço daquela primeira parte de campeão, onde o Porto fez todas as despesas do jogo, com 50º graus à sombra, enquanto o Celtic esperava pelo cansaço dos portistas para lançar o seu contra golpe, através desse fantástico Larsson. Quando o Marco Ferreira obrigou o guarda-redes do Celtic a defender uma bola para o lado e ela foi parar aos pés do Derlei, eu olhei e vi que, entre este e a baliza, havia ainda dois defesas do Celtic para ultrapassar. Julguei a missão impossível, constatando o estado de total desgaste do Derlei. Acho que só ele acreditou que era possível, quando rompeu direito ao golo e à vitória, fintando um adversário, tirando o outro do caminho e reunindo a reserva final de energias e de lucidez para encher o pé e rematar com força e colocação suficientes para tornar impossível a parada do guarda-redes adversário. É dos tais momentos do futebol que hão-de viver comigo para sempre, porque foi o resultado da vontade invencível, da garra e do talento de um jogador que, quanto maior é a pressão, quanto maior é a dimensão histórica do instante, maior é a fé e a determinação que revela — jogando não apenas para um jogo, nem sequer para uma final, mas verdadeiramente para a história. Não há muitos jogadores como o Derlei. Há outros melhores tecnicamente, há outros ainda melhores fisicamente mas, neste tempo de mercenarismo, há raros que consigam aliar ao talento e à força, a generosidade, a entrega ao jogo e o respeito pelo clube que lhes paga, como o Derlei. Em Alverca, ele caiu literalmente em combate, traído pelas qualidades que tem e não por algum infortúnio. Podemos sempre exclamar, como eu exclamei quando o vi no chão a pedir assistência e percebi logo que era uma rotura, porque ele não é de fitas: «Mas que raio fazia ele no lugar do defesa-direito, no minuto seguinte a ter marcado um golo?» Mas a verdade é que, se ele não fosse assim, não seria o extraordinário jogador que é. Daí que, mesmo como portista, o que mais me custa nem é a baixa do Derlei para a equipa, num momento crucial do Campeonato e sabendo que ele representava quase a única ténue esperança contra o Manchester, em Março. O que mais me custa é a injustiça da lesão para o próprio Derlei. Se há jogador em Portugal que a não merecia, era ele. Que volte, igual ao que era, tão cedo quanto possível, porque não restam muito mais jogadores que mereçam a admiração que ele merece.
"

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